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Lis Haddad
Belo Horizonte, MG
Nós somos fortes em dissolver rochas

Palmeira Juçara
e
Embaúba, 2024
tecido e miçanga, 2,2 x 1 m
Tucano do bico verde,
e Formigas Aztecas, 2024
tecido e miçanga, 1,18 x 1,18 m

Lis Haddad tomou as relações multiespécies do bioma do território do Pós-balsa como substrato para sua produção artística. Durante a residência conheceu Xina, um mestre marcheteiro morador da região, e se encantou com suas infinitas histórias. Xina conhece as matas, as águas e os animais do território como ninguém. A partir desse encontro, suas narrativas foram disparadoras para a artista refletir sobre relações de cooperação e simbiose que ocorrem pelas diferentes espécies vegetais e animais naquela paisagem. Como resultado, Lis criou uma série de bandeiras, peças cerâmicas e um ateliê de trabalho temporário em uma ruína na Aldeia Infantil SOS Brasil, um espaço de projetos sociais e assistenciais no bairro Tatetos, onde Xina toca sua marchetaria.

Lis Haddad

Texto de Bruna Fernanda

Pesquisadora, historiadora e curadora e educadora.

Mestra em Culturas e Identidades Brasileiras no IEB USP

 

As ruínas que existem no território do pós-balsa chamaram a atenção da artista Lis Haddad desde sua primeira visita à região. As construções humanas, em processo de retomada multiespécie, surgem como marcas das movimentações sociopolíticas que conformam a ocupação daquele espaço — um lugar marcado por conflitos de interesse e inseguranças para seus moradores por tratar-se de uma Área de Proteção Ambiental e por resguardar territórios indígenas demarcados. Lis começou a residência interessada nas relações humanas e nas formas pelas quais poderia afetar e ser afetada pelas dinâmicas sociais locais, e foi justamente por meio de uma ruína que conseguiu conjugar suas disposições iniciais com aquilo que as experiências da imersão dispararam em seu processo de criação.

A Aldeia Infantil SOS Brasil é um espaço de projetos sociais e assistenciais localizado no bairro Tatetos, onde também funcionam a Associação de Ceramistas Baluarte e o Espaço Lar Cristian & Marchetaria. Foi ali que a artista conheceu Xina, um mestre marcheteiro que vive na região do pós-balsa há muitos anos e desenvolveu uma relação de sincronia com a natureza e com os seres daquele ambiente, sejam humanos ou mais-que-humanos. Seus “causos” orientaram o olhar de Lis para as interações constitutivas do território e para as semelhanças entre o trabalho com a madeira e a prática têxtil, material com o qual a artista já vinha trabalhando.

Tecendo um diálogo com a antropóloga Anna Tsing — que se dedicou a compreender as paisagens como produto das relações entre espécies distintas que moldam a vida umas das outras de maneiras diversas —, Lis nomeou a série desenvolvida durante a residência como Nós somos fortes em dissolver rochas, trecho retirado de uma obra da autora. Tsing propõe essa perspectiva para as interações que configuram os territórios no contexto do Antropoceno, condição geo-sócio-histórica que dá a ver a ação humana como um agente geológico e ecológico. Se a degradação é um dos vestígios humanos mais presentes nas paisagens, as ruínas — sejam edificações destruídas ou estados de contínua deterioração — nos mostram que a vida no planeta não se restringe às compreensões humanas de fim.

Nós somos fortes em dissolver rochas se desdobra em quatro bandeiras feitas com tecido e miçangas, que carregam a representação de alguns seres inseridos em uma rede de interdependência. Uma delas é a embaúba, espécie vegetal comum na Mata Atlântica, cujas raízes formam uma simbiose com fungos micorrízicos. No interior de seu tronco vivem formigas da espécie Azteca, que defendem a árvore contra herbívoros e invasores, enquanto a planta oferece abrigo e, em alguns casos, alimento. Para a artista, “essa árvore é um microcosmo de vida compartilhada”. O aprendizado contido nesse pequeno universo da embaúba ecoou uma frase dita por Xina: a gente tem que aprender a nadar no mato. E assim Lis nomeou sua obra. 

As bandeiras, que também apresentam a formiga Azteca, a palmeira jussara e o tucano, dão conta de toda a vida presente nesse campo de discussões por meio de tecidos coloridos e brilhantes — pontos e linhas criam a composição com pequenas pedras cintilantes, estampas, texturas e acolchoados. Em todas elas, o verso é deixado à mostra, revelando o trabalho de costura, que remete a constelações e mapas. As frases de Xina, que nomeiam cada obra, são bordadas nessa face em negativo. Molduras geométricas coloridas dão contorno às composições, mas são sempre atravessadas: seja por raízes e folhas que resistem a qualquer ideia de contenção, seja pelas palavras de um homem sensível a mundos invisíveis ao olhar moderno.

Em meio àquele território, onde se cruzam tantos saberes e práticas, Lis também produziu uma série de azulejos cerâmicos com desenhos inspirados em cortes histológicos de simbioses entre raízes e fungos. Ao lado dos artistas da Associação de Ceramistas Baluarte, realizou todas as etapas da produção das peças, que ficaram marcadas pela gestualidade de quem as fez, pelo fogo e pelas intempéries do forno para cerâmica. Esses azulejos foram aplicados nas ruínas de um antigo vestiário na Aldeia Infantil SOS Brasil, interagindo com os azulejos originais ainda presentes nas paredes. Essa ruína foi a paisagem onde Lis apresentou suas bandeiras pela primeira vez — e onde pôde conhecer e se relacionar com muitos frequentadores do território, além dos animais e plantas que tanto povoavam os relatos de Xina. Posso dizer que foi ali que a artista aprendeu a ser outra diante dos muitos outros que exigem sua presença em nosso mundo.

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